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18-10-2008

isto é mais uma vontade

A minha vontade é a de ir

E partir num cavalo montado com o céu pintado de azul e de negro
E os campos de branco vestidos com montes de verde às costas
E de costas voltadas para o que deixarei para trás
E ver o ferro do caminho que farei empurrando a carroça
E o fulgor duma vida num rasgo de sangue

Hei-de ser Homem que chegue e me baste
Hei-de ter um só fardo e outros tantos na mala
Hei-de abrir mais um trilho e queimar a cidade
Hei-de saltar e esbarrar contra as barreiras desta ansiedade
Hei-de engolir a terra seca da estrada do caminho que é em frente

09-07-2008

inquietação - josé mário branco

A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazes

São flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalha

Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Ensinas-me fazer tantas perguntas
Na volta das respostas que eu trazia
Quantas promessas eu faria
Se as cumprisse todas juntas

Não largues esta mão no torvelinho
Pois falta sempre pouco para chegar
Eu não meti o barco ao mar
Pra ficar pelo caminho

Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda

Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Mas sei
É que não sei ainda

Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
Qualquer coisa que eu devia resolver
Porquê, não sei
Mas sei
Que essa coisa... É que é linda



José Mário Branco

11-06-2008

um dia...

Um dia. Um dia viremos ao de cima de novo.
Tornaremos a tornar os gestos ingénuos em eternos amargos e doces de boca

Abriremos a janela mil vezes
Fecharemos as portas às vozes que calam e acalmam a força que temos
Cerraremos o punho e exaltaremos os cantos dum livro qualquer.
Saberemos gritar que esta merda não serve e que mude!

Um dia. Pode ser que um dia a voltarmos, voltaremos p’ra ver como foi
E tornaremos a partir que esta terra só serve para nos lembrar que não tornamos a vir

Um dia. Pode ser que um dia voltemos de novo num dia só p’ra ver como foi.
Um dia. Pode ser que um dia. Não hoje, um dia…

17-04-2008

a dança

Era como uma dança a dois passos da porta
e as estacas e os tacos batiam pelo passo marcado de alguém que dançava.
Realmente dançava.
E seguía dançando até quando quisesse tornar a chamar-me
E eu dançava também na vontade dum passo mais forte
Que na estaca e no taco marcasse o meu passo

- um dois três - e o teu passo.
- um mais um - o nosso passo outra vez.

E dançámos!

14-03-2008

beirut - elephant gun



"And it rips through the silence of our camp at night
And it rips through the silence, all that is left is all that i hide"

amanhã talvez

A minha alma iluminou-se de coisinhas pequenas apanhadas na casa do lado. Dois números abaixo da tua e na rua dos meus encantos perdidos. Bem acima das escadas que vão dar ao saber. Como quem vira à esquerda na dúvida da sua ideologia. E voltas para trás e chegaste à razão. Mas qual é a razão para isto? Três ou quatro certezas e muito por fazer. Falta ainda falar nessa flor, que é amor ainda a chamar. Não vou atender, só quando souber que tu sabes também. Amanhã, talvez!

aos que escrevem

Quem tem medo das palavras não pode escrever. A menos que seja por amor. A menos que ame a quem escreve. A menos que escreva por menos que pouco.
Quem pensa em palavras escritas não ama o que escreve e não diz. Ou só escreve quando ama aquilo em que pensa.
Quem tenta escrever a pensar que não ama o que escreve, só vai acabar por escrever sem pensar e assim só lhe surgirão escritas palavras que ama e nem pensa em parar p’ra pensar.

17-02-2008

vontade incomum

Queria não ter medo das palavras, mas assustam-me os actos, pelo menos tanto como a palavra não dita depois do gesto consumado. Ou como a mão ao lado do corpo a tocar em lado nenhum. E os olhares constrangedores pela falta de amores em comum...

09-01-2008

espelho

Gosto quando me olho ao espelho. Feito feio
Desfeito e feito de cérebro aberto
E o que se passa cá dentro
No seio do que importa
Só eu e o reflexo da face

Feito posto de escuta e a luta interior às avessas
Feito homem a colar as peças que juntas me formam
Desde os pés à origem de ideias
Dito e feito resumo o meu Eu ao espelho
Feito velho que olha p’a trás e só faz que sim com a cabeça
Que só pensa no que não fez e o que fez também dá que pensar
Feito a jeito e o peito inchado de ar
Ou os olhos vermelhos de quase chorar
Com tamanha emoção

Aqui estou a olhar mais um dia
E é só letargia o que vejo no rosto
Feito grande
Feito gente
Feito tudo o que sou
Feito homem normal
Feito hipócrita, como é habitual
Feito muito sincero
Sou só eu, ou serei tu também?

Saio da frente do espelho
Volto a mim

janeiro

Dei por mim a pensar
Nas doces manhãs de Outubro
Como quem enrolava um papel
Ou escrevia uma lembrança na parede

O café ainda cheira a maçã
E o ar a dobrar-se para nós

É a voz que é de vós para mim
E assim só pensei mais um tanto

Dei por mim a encontrar esse dia
Mais o sabor dos teus lábios
Só por mim a sonhar, quem diria
Momentos de vida mais sábios

Ou reler outra vez os textos todos
O assombro que são os teus olhos

Espero antes cantar quando o sol já se estiver a pôr
Espero sempre um tardar sem luar ou cheio de lua
Quero dor. Quero amor

A mulher que se encontra na rua
É fruto e reduto da tua imaginação.
Não te encontres com ela às cegas
Que cegas mal chegues a casa
Dói-te a asa, decerto
O deserto é agora,
A gota de água virá a seguir.